quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

DESABAFO



                                                       Biblioteca de Rachel de Queiroz

Ocorreu-me que sou um saco de pancadas que as pessoas pensam que jamais se magoa; que não sofre as consequências comuns a todos. Talvez pensem assim devido o fato que não possuo ninguém e também não sou de alguém e, por esta razão, sou apto a receber todas as pancadas da vida, pois todos julgam que as aguento sem titubear mais que qualquer um. “Sem contar que não há quem o defenda.”  Não sei! Talvez me julguem assim devido a minha habilidade de contar até o fato mais ignóbil de forma divertida. Ou me julgam digno de toda dor mesmo, pois sou como poeira, sem alicerces, sem  coerência, sem objetivos concretos comuns a maioria; um pobre coitado sem perspectivas, já  que não leva nada a sério. Que culpa tenho eu, se a única coisa que levo a sério é a literatura e  todos que conheço tratam como inútil nos tempos de hoje! Sou  como um bobo da corte, que todos julgam boa companhia até o ponto de que precisam de um bode expiatório para culpar por qualquer coisa, afinal todos têm uma reputação a resguardar, têm pessoas a quem não querem magoar e, eu, não tenho nada disso. Sou um graveto descartável tão pequeno que não serviria nem para acrescentar na fogueira para acalentar o frio de uma noite gelada. 
  
Eu sou sozinho e vago sem destino, portanto, ponham-me em meio aos escarnecedores, aos desonestos, ponham-me no pote de barro dos que não possuem coração que isso não me fará mal algum.  “E se fizer, ele merece todos os impropérios do mundo mesmo, pois é um ateu irremediável e já se encontra automaticamente no inferno.”  E ai vem mais uma lista de infinitas humilhações: “Ele  Não tem posses, não tem coragem, é um vagabundo, vive como um parasita à custa dos outros. Há de morrer sozinho e pobre, como o pai.  Não possui honra, é um traidor que na primeira oportunidade troca os amigos por qualquer moeda de prata ou por um rebolado de alguma adolescente sem juízo.” - Não sou nada disso!-                                                                                                              
Eles jamais entenderão que eu não posso me render a minha realidade mesquinha; que eu possuo a mente de um gênio e que, por esta razão, eu preciso sacrificar-me por minha arte       
 - Ah Samuel, quantos sacrifícios fazes por tua arte. Poderia ser um frentista de posto com um salário fixo, poderia ser um professor de destaque na rede pública, mas não, é um gênio passando fome. Grande bosta és Samuel; um inútil que acha que possui uma grande mente como dos  gênios do passado, porém, jamais teve ou criou uma grande obra e nem sequer é visto por aqueles que lhes tem a um palmo das fuças.                                                                   
Mas Não importa quantas humilhações ainda eu tenha que sofrer calado, se bem que, quando não tenho calado tenho sido mais ridículo ainda, como bem disse Fernando Pessoa. Não importa! Eu irei suportar até as últimas consequências, minha literatura vale a pena, embora não seja nada para os demais. Vou morrer pelo o que acredito e quando o último soldado for abatido e restar apenas eu e o fumo das balas inimigas, eu estarei lá, esperando o chumbo que me atingirá o peito, mas com a minha bandeira erguida  e com a certeza que não morrerei  como um covarde. No fim, eu não terei a sensação que sucumbi à ordem da vida; não terei a dura sensação de que não fui eu porque me rendi à vida ao meu redor que exigia que eu fosse só mais um moldado segundo um padrão preestabelecido com o bordão: só assim, se consegue vencer na vida. Não serei um deles!  Eles serão esquecidos como todos os covardes que não compreendem que a vida real pode ser muito mais que um punhado de moedas de ouro acumuladas ao longo do tempo. 

Quando eu ouço calado os impropérios que a mim proferem, não pensem que é porque me faltam argumentos ou qualquer coisa que o valha que não retruco. Não digo nada porque sei que minhas palavras são preciosas demais para serem desperdiçadas em meio a gritos de ignorantes. Minhas palavras objetivam semear a paz e não a discórdia. Minhas palavras objetivam reconciliar o pai com o filho, o irmão com o  irmão. Vim trazer a rosa e não a espada! Minha luta é  interna e todos os sacrifícios e as humilhações que sofro apenas me tornam mais forte e mais convicto de quem sou. Ainda hão de ver eles as alturas que chegarei e, senão chegar, eu morrerei com a certeza que fiz o que podia e não me acovardei um minuto que fosse.
Literatura, humanidade, viverei e morrerei por isso!   

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Cadeira de balanço




Sentou-se na velha cadeira de balanço de metal que já se encontrava há vinte e sete anos na varanda da sua casa. Olhou para os lados: “nada de novo”. Quer dizer, a dor que ele docemente amargava apenas na mão esquerda agora se transferira para a direita. Verificou-o que cada movimento que proferia fazia bem mais barulho que quando balançava levemente sua adorável cadeira de balanço.  Notou que não tinha mais pensamentos concisos, que não mais alimentava esperanças por mocinhas que ora ou outra passavam de bicicleta aos gritos na antiga estrada que dava para qualquer lugar que não mais era o seu lar. Notou que era um homem decrépito, cujo se decompunha com o tempo que passava. Ele percebeu, com dor, que  há muito não gastava aquele seu merecido tempo como deveria. Ele era um mísero pedaço de carne intragável até mesmo aos vermes que o espreitavam famintos e desavisados, coitados, que ele, quando finalmente fosse jogado aos abutres, não lhe restava mais nada de nutritivo para alimentar um corvo que fosse, pois tinha gasto todas as suas energias em desconstruir-se seguindo os desejos dos outros ao invés  de ter se construído seguindo os próprios desejos. “O homem tem que se construir!”  Ele olhou para a velha estrada e, suspirou,  juntamente com uma rajada de vento que levantou poeira e acrescentou mais umas partículas avermelhadas no velho mourão que se encontrava no canto da sua cerca a mais tempo que conseguia lembrar e, notou que, até ali, ele não tinha feito nada com o seu passado, e o seu presente se encontrava ali, resumindo-se a uma velha cadeira de balanço e que o seu futuro não ia ser muito diferente.

 A vida toda, sem exceções, ele simplesmente seguira a ordem da vida, aquela vida medíocre condicionada aos poucos estudos, um emprego público mais medíocre ainda, uma esposa burra que jamais lhe dera ao menos a alegria de um filho. Ora, pois se ele havia conscientemente falhado em tudo, era justo que não falhasse também com sua natureza instintiva e já tivesse tido um filho aquela altura da vida. Mas nem isso! A vida toda, ele não passara de um funcionário publico sem chances de subir de cargo e, conciliar a isso, um agricultor sem destreza alguma, pois se tinha exercido até ali alguma atividade na lavoura não era de sua livre escolha.

 Ele não sabia lavrar um punhado de milho que fosse com maestria, como sempre sonhara o  seu pai cujo lhe deixou alguns hectares de terra. Ele odiava falar sobre as cifras que precisaria gastar para arar a terra a ser logo semeada. Odiava ter que  ir aos dias de folga a cidade para comprar ração  para as galinhas que sua esposa, aparentemente,  amava mais do que a ele próprio. Odiava ter que fofocar com vizinhos mexeriqueiros sobre as mulheres separadas que davam para qualquer transeunte que passasse na estrada.   Odiava ter que suportar os “baba ovo” do prefeito da sua pequena cidade, que só falavam maravilhas do corrupto que já se encontrava há mais de vinte sete anos no poder só para lhes garantir mais um ano de trabalho mole na máquina pública do município. A verdade é que ele odiava ser obrigado a ser um deles! Ele verificou que odiava quase tudo na sua vida medíocre! Que tudo que ele havia feito e conquistado até então não tinha sido para si e, sim, para agradar aqueles que o rodeava.  

 E passados mais alguns redemoinhos de poeira sem direção previsível frente a sua varanda,  ele acabou verificando também, já enfurecido, que até mesmo aquele gemido da sua velha cadeira de balanço cujos tanto o acalmara em outros tempos, bem mais que os grunhidos que proferia sua esposa nos poucos segundos de furnicamento que tinham de ano em ano, que aquilo também, como tudo na sua vida, era ridículo.  E o fato dele se conformar com tudo, o tornava mais ridículo ainda.  Eis que, mesmo contra todos os pensamentos que o assolava, ele decidiu levantar-se daquela moleza, daquela monotonia e fazer algo por si mesmo: foi até o pé de manga, tomou uma belíssima manga nas mãos, verificou o quanto o adubo ali posto aquele ano tinha feito bem ao seu antigo e bem cuidado pomar, tomou uma faca e, com maestria, cortou a manga e a devorou vorazmente, pois tinha fome e, depois de satisfeito, retornou a sua velha cadeira de balanço, que ao certo ainda suportaria suas reflexões, embora resmungando, por mais uns vinte sete anos...    

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

O esmalte rosa


Aos doze anos, ela fora violentada por seu primo enquanto buscava lenha no matagal próximo a sua casa. Isso se repetiu várias vezes. Até que, depois de um tempo, mesmo sem a pretensão de catar qualquer coisa, ela passou a se direcionar quase que diariamente para o arbusto frondoso e verde, aquele no qual seu primo, por inúmeras vezes, a obrigara se despir e ficar em silêncio.  Eis que, naquela ânsia humana, ela engravidara. Ela não era bela, ele também não. Não tinham recursos, não estudavam. Viviam ambos na mesma condição social. Eis que, perceberam que o que tinham mesmo era um ao outro. O rapaz magro, castigado do sol, construiu uma casinha no fundo do quintal de seus pais, com tijolos que ele mesmo confeccionara com argila.   Passaram a morar juntos.  Depois de um tempo, a mulher, conscientemente, resolveu pintar as unhas com um esmalte rosa. Já tinha três filhos, cujos lhe renderam marcas irreversíveis no corpo, isso adicionando as das pancadas que o marido sempre lhe agraciava todos os dias.  Ela vendo a sua vida monótona, em que nem mesmo a brutalidade do marido lhe dava folga um dia que fosse, resolveu passar um esmalte rosa nas mãos sujas para agradar o companheiro e ser feliz. O marido, ao chegar em casa, transbordando de boas doses de pinga, vendo o rosa nos pés pretos da mulher indignou-se e, violentamente, os colocou sobre um velho tamborete que tinham e, irracionalmente, passou a cortar os dedos da companheira, um por um, enquanto ela dizia que o amava mais que tudo.

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