quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Uma estranha forma de lidar com a dor


Ele não sabia se pertencia á algum lugar, mas aquele em que vivia, sabia que não era. Também, não tinha certeza se existia algum lugar no universo que ele se encaixasse; um lugar que era o seu lugar.
Sentia que nada ali era dele. A própria saliva não era  sua, era uma extensão estranha de um universo que não pertencia ao seu corpo. Seus olhos, sua visão, tudo não passava de extensões de alguém que não era ele.  A barba, aqueles espinhos estranhos na sua face, não era parte do seu corpo, tampouco da pessoa que era, de modo que sendo ela uma extensão alienígena pregada ao seu rosto, ele adquirira o transtorno compulsivo de ficar tocando, puxando repetidamente, até que ele tivesse espasmos musculares ou entrasse em convulsão. Quando percebia essa loucura, descansava dois segundos e em seguida, em um ato involuntário, estava fazendo de novo. Com certeza, no futuro, adquirirá uma lesão por esforço repetitivo devido aquela barba forasteira que mantinha à pouco custo no seu rosto. 
  
Certa vez, sem entender como, nem por que, ele começou observar os narizes. É! Narizes, aquelas coisas estranhas e sem graça bem no meio dos rostos das pessoas. Passou a prestar atenção em demasia as narinas abertas, os formatos, as cores, os cravos - e em pouco tempo concluiu que os narizes deixavam as pessoas engraçadas e estranhas e que aquela estrutura não podia pertencer a anatomia humana. Julgava-os diferentes demais.     
Isso o intrigou tanto, que ele passou seis meses sem conseguir olhar diretamente no rosto das pessoas sem cair na gargalhada; aqueles narizes grandes, assimétricos e brilhantes, todos diferentes, mas de mesma estrutura, causavam-lhe certo asco chocoso. Ele não conseguia aceitar aqueles oleosos narigões com seus buracos duplos inalando oxigênio sem parar. Nesta loucura, se convenceu que não seria sensato que ele tivesse nariz como todo mundo e resolveu imaginar que realmente não tinha.

Ele sabia que um nariz não lhe faria tanta falta. Seu próprio pai não tinha nariz e quase nem sentia falta. Na verdade, seu pai perdera quase todo o rosto pro câncer de pele: os lábios superiores, o nariz, as bochechas, o olho esquerdo, e boa parte do direito. Amarga dores intermináveis, mas quando questionado se sente falta, responde: "muito pouco, sinto falta do lábio superior, pois sem ele, não posso fumar meu cigarro como se deve." Além da visão, ele tinha curiosidade se seu pai, havia perdido também a capacidade de sentir cheiro junto com o nariz - mas não tinha coragem de perguntar.

Algumas pessoas, conhecidos, na verdade, como uma forma de consolo pra si mesmas, ante a todo aquele sofrimento, repetiam para seu pai na cara dura: "cada um paga seus pecados aqui na terra."
Particularmente, ele nem acreditava em pecado, erros têm consequências e só. Sem contar que se existisse um pecado que merecesse aquele castigo, seria um que o próprio Deus não teve coragem de citar na bíblia. Logo, tal pecado seria apenas uma ação sem nome e que só depois de praticada o praticante adquiriria consciência do seu feito sem nome.  Mas no fundo ele sabia que não era castigo ou punição por algum erro do passado,  apenas ele tinha negligenciado sua própria saúde quando ainda podia fazer alguma coisa.  Aquele câncer, na verdade, era devido o sol que seu pai tomara por longos anos trabalhando na lavoura no litoral do nordeste.

A dor que o nosso estranho sentia com o sofrimento do pai, como todas as outras coisas citadas, inclusive os narizes, não passava de uma extensão alienígena de algum universo que ele conhecia bem mas que não o pertencia.
Nosso herói então, fascinado com os narizes abdicou do direito de possuir um; aquela estrutura estranha e sem serventia. Ele estava fadado pelo sangue a ter o mesmo fim que seu pai.


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