terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Cerâmica





Quarenta e quatros anos e não tinha sido nada fácil chegar até ali. Não mesmo. Criou cinco filhos, sofreu as maiores privações e quase sempre lhe faltou o essencial. Só nunca lhe faltou sonhos, afinal uma vida difícil não é pré-requisito pra que não se tenha sonhos. Certo que poucos e pequenos, tão pequenos que certa vez ela até tentara alimentar dois ou três sonhos de uma vez, mas sua realidade não lhe permitia.   

Desde que se casara aos dezessete anos, vivendo na mais profunda miséria, ela se conformou com a lama do presente se baseando nos louros do futuro que viria com sua aposentadoria por idade como trabalhadora rural. Na idade que se encontrava, fazendo as contas, ainda faltava onze anos. Ela dividia esses onze anos o máximo que podia no intuito de diminuir a  longa jornada.
- Calculava mentalmente: "Onze anos é quase a mesma coisa que dez, que dividido por dois são cinco, e como o tempo tá passando mais rápido que antigamente, sem que eu perceba, já estou aposentada. O tempo passa como o vento! Ora, a copa do mundo mal acabou e próximo ano já tem de novo." E só assim aquela mãe batalhadora conseguia sorrir uma vez ou outra.     

Seu sonho não era se aposentar, ela queria mesmo era possuir uma casa com piso de cerâmica e descansar sossegada ao fim de tarde sabendo que no dia seguinte teria com o quê alimentar sua família. Até então, ela não tivera uma só noite tranquila de sono, pois sempre tinha que matutar a noite inteira como conseguir alimento para o dia seguinte. Aquela mulher não tinha sequer o privilégio de pensar mais que um dia por vez, pois seria presunção demais. Ela também mantinha desejos menores, como manter um pote de vidro cheio de bolachas mais que um dia em cima de um balcão que construiria com o dinheiro da aposentadoria. Quando observava a vizinha comprando peixe do vendedor que passava gritando à porta - vizinha esta que já tinha alcançado a graça da aposentadoria - seus olhos brilhavam e ela sonhava: "um dia poderei guardar um pouco de dinheiro pra comprar um quilo de garajuba na minha porta também”.     

Ela tinha tudo planejado, nos seus mínimos detalhes: nos primeiros cinco anos de aposentadoria, ela iria ajudar os filhos, pois sentia que tinha uma dívida com cada um deles já que não pudera lhes proporcionar uma vida digna, tão pouco pôde construir um legado pra deixá-los de herança, então, todos tinham que vencer na vida sozinhos e, longe de sua casa, uma vez que seu interior não oferecia as oportunidades. Ela teve que suportar a dor de ver todos os filhos, antes mesmo de completarem a maioridade, saírem de casa em busca de melhores condições de vida. Dor esta que não conseguia esquecer. Sentia que falhara com os filhos, então dedicaria os primeiros cinco anos pra tentar ajudá-los na maneira do impossível. Feito isso, ela então poderia pensar em si, embora já encontrasse em idade avançada, porém, com sorte, talvez lhe restasse um pouco de vitalidade pra realizar os seus sonhos.  

Em uma tarde, ela liga a televisão no intuito de esquecer ao menos por uns instantes os dissabores da vida vendo suas novelas mexicanas, e por infortúnio lhe é imposta uma notícia que lhe tira o chão, o céu e todo o resto, em que o governo propõe alterações na aposentadoria - uma tal de reforma da previdência - e dentre as mudanças propostas, havia a alteração do tempo da aposentadoria por idade dos agricultores. Ela ficou horrorizada, pois com a reforma, tanto homens como mulheres só poderiam se aposentar com 65 anos. Nos seus sonhos, talvez até mesmo na vida, não cabia somar mais dez anos de espera. Ali, seu mundo desmoronou.   

Talvez na cidade grande aposentadoria signifique o fim de um ciclo, mas em regiões rurais significa tranquilidade, realização de um sonho que muitos esperam uma vida inteira pra conseguir. É quando pela primeira vez na vida, aqueles pobres coitados experimentam a tranquilidade da certeza de um dinheiro certo todo final de mês. Então tirem suas conclusões a respeito dessa reforma que eu entendo pouco, mas entendo da minha gente e sei as consequências de uma mudança como esta nos couros do povo sofrido de quem faço parte.  



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