domingo, 12 de fevereiro de 2017

Eu preciso falar sobre o verão de 1993 capítulo XXI



Com o tempo, eu fui me recuperando e pra não perder o ano escolar, fui obrigada a voltar ao colégio. Se me perguntassem se eu queria retornar as aulas com toda aquela pressão na cabeça, eu diria que não. Enfrentar Jorge Luiz, que sequer me apareceu enquanto me recuperava não me parecia uma boa ideia. E também eu tinha que trazer as atividades pra que Carina não perdesse o ano também. Eram tantas banalidades. Eu não suportava nem mesmo pensar em tudo aquilo; naquelas bobagens de gente comum. Eu era um monstro, uma chaga sangrenta do senhor, meus pensamentos buscavam uma razão maior, qualquer coisa que me trouxesse mais sentido pra vida e não seria na escola que eu encontraria respostas. Eu existia, mas muito pouco. 

De manhã, a cabeça doía, meus olhos flamejavam, as pontas dos meus dedos ardiam por alguma razão desconhecida. Meus tiques nervosos sobrecarregavam os movimentos das minhas pernas. Eu queria que tudo aquilo parasse. Que o mundo parasse de girar e começasse girar em direção contrária, talvez assim como de cabeça pra baixo nós vemos um mundo diferente, eu vivenciasse uma nova realidade. Eu não mais me reconhecia dentro da desgraça do meu passado. Não havia mais lugar no mundo que me coubesse. Eu só queria me esconder, entrar em um casulo úmido em que eu só pudesse respirar e só sair quando eu fosse alguém diferente, limpa dos meus pecados e mazelas mentais. Deus fora injusto comigo nos meus moldes. Eu não tinha que me questionar sobre quem eu era; sobre as possibilidades daquilo que eu seria se sempre chegava à conclusão nessas reflexões que eu nunca seria nada, que eu nunca andaria entre as estrelas, nem cavalgaria nos montes verdejantes da sanidade. Eu só queria respirar os campos de girassóis num dia quente e me deixar levar pelas cores, pela beleza do sol e do céu azul. Era pedir muito Deus?  Como eu queria ser um girassol em meio a milhões iguais a mim. Eu só teria que acompanhar o sol todos os dias. À noite, eu simplesmente dormiria, sem essa de refletir, de me questionar. Depois de um tempo, como último de meus atos nobres e comuns, minhas sementes alimentariam um canário de uma senhora aposentada e solitária. Tudo seria tão mais simples. Tudo seria tão mais eu. Quem eu sou, Deus? Quem eu serei? 

Diante desses pensamentos, meus olhos pesaram com o peso dos sonhos de uma adolescente transtornada, meu peito doía, tinha dificuldade pra respirar. Parecia-me que a solução pra tudo aquilo era sair na rua e gritar bem alto, ou mesmo bater a cabeça com força em um poste, só pra sentir o cheiro do meu sangue, assim recomporia pela dor os meus pensamentos, mas me contive como pude.

Chegada a hora de me arrumar pra ir à escola, eu não tinha vontade de passar um batom sem graça, meus cabelos não careciam de se pentear, meus olhos murchos não necessitavam de sombra, pois toda escuridão em mim transparecia no branco dos meus olhos. Fiz uma Maria Chiquinha com prendedores de cabelos indiferentes quanto a cores e modelos; eu só precisava de sentindo, não de aparência. Tomei minha mochila que parecia pesar uma tonelada e sai.  Na calçada, olhei para o horizonte, respirei o sol mais uma vez e coloquei os primeiros pés no mundo externo depois de alguns dias dentro de mim mesma. Acionei no meu walkman de última geração La traviata, interpretação brilhante dos Três Tenores e me direcionei a escola como quem valsava rumo ao seu destino inevitável. A caminhada com música me pareceu mais viável. Ao dobrar a esquina, quando avistei o portão da escola, aumentei o volume da ópera no máximo, pois quando adentrasse aqueles muros, o meu espetáculo, meu último ato, teria a plateia que merecia. 

Caminhava convicta, pois o mundo a minha volta me era indiferente. O único som que eu ouvia era a valsa da minha vida. Ao passar pelo portão, deitei a mochila no solo quente, desfiz o penteado, limpei as lágrimas que caíam do meu coração e valsando La traviata, deitei os vasos de plantas no corredor principal; arranquei a saia da inspetora e dançado brilhantemente com as mãos, continuei em frente. "Como a música é bela!" Totalmente indiferente à plateia que aplaudia aturdida aquele espetáculo tão enriquecedor de almas vazias eu seguia como Dorothy na estrada de tijolos amarelos. Logo encontrei Jorge Luiz no corredor, o beijei rapidamente e continuei valsando. Mais a frente, avistei aquele que seria minha marionete e ignorado tudo e a todos, o beijei também. Abracei uma coluna e envolvida pela música a beijei também. Encontrei aquela magricela do beijo bom e me deliciei com seus lábios. A plateia me acompanhava eufórica, torcendo pra que aquele brilhante espetáculo não findasse tão cedo; era tão bonito: Funiculi, funiculá! Deitei umas cadeiras, gritei o grito dos inocentes, e continuei como se também não quisesse que acabasse. Mais a frente, eu avistei o vigia cujo se encantava com o pirulito de uma aluna; valsei até seu pescoço - e mais uma vez - porém agora embebida pela arte, eu arranquei um pedaço com gosto e sem remorso de sua orelha suculenta. Como gesto último, eu me deixei que caísse na areia quente da primeira hora da tarde e permiti que me contivessem. Só pedi que não desligassem a música; só não me tirassem a ópera; só não me tirassem a arte.    

Com os lábios embebidos em sangue alheio, os olhos cheios de alma, as mãos trêmulas, cabelos revoltos, mais uma vez fui levada para aquele local que sempre fora o meu lar: o manicômio da cidade.
Lá estava eu novamente naquela construção antiga de mais um século construída pra abrigar prisioneiros de guerra. Ao rever aquelas paredes sujas e surradas pelo tempo; ao vislumbrar aqueles corredores, aqueles túneis, aquelas vielas e aqueles loucos iguais a mim, finalmente me senti em casa. Lá, me sedaram e eu adormeci, findando assim a mais bela Ópera por mim estrelada. Só me restava rosas vermelhas ao final, mas adormecida eu não pude sentir o cheiro das rosas jogadas no palco pela plateia agradecida pelo espetáculo.

Leia o capítulo 22 clicando nesse link  






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