terça-feira, 8 de agosto de 2017

Moinho



Aos 24 anos, ela se julgava sonhadora e feliz, embora tivesse como certo que o mundo não correspondia aos sentimentos do seu coração.
Todas as noites, apreciando o silêncio agridoce da solidão, ela se punha a pensar em tudo que fizera durante o dia pra expurgar os demônios que inevitavelmente se apoderavam do seu corpo sempre aberto a todas as dores do mundo. Depois, propositadamente, se enchia de pensamentos bonitos esquecendo do mundo lá fora, e assim, refazia seu sorriso, seu coração, sua pele, e todo o resto, de modo a suportar o dia seguinte sem definhar de vez. Ela adorava seus pensamentos desconexos e precisava deles pra se regenerar de um dia inteiro no mundo exterior, para ela cruel e mortal.

Na manhã daquele dia, ela saíra como sempre às sete e quarenta carregando um sorriso largo nos lábios, um emaranhado de sonhos nos olhos, liberdade nos cabelos e tamanha vontade no coração que achava que poderia abraçar o mundo de uma só vez. Caminhando, abraçou inocentemente o cara fantasiado de hotdog na esquina, mas sentiu uma mão apertar suas nádegas, estranhou, mas preferiu ignorar, e continuou, embora parte de si mesma estivesse ficado ali naquela calçada.

Ao atravessar a rua, ainda feliz e saltitante, ela ouviu piadas de mau gosto de homens que limpavam as janelas do primeiro andar do prédio mais feliz da cidade; mas só respirou fundo e continuou, ainda que outras partes de si tivessem se deterioradas ali. Mais a frente, comprou pipoca do seu Omar, o homem de sorriso eterno, e ofereceu a um menino que vendia balas no sinal, mas ele rejeitou questionando se ela não tinha dinheiro. E assim, pouco a pouco, o mundo a sua volta arrancava a beleza que ela havia ganhado de si mesma na noite anterior.

Enquanto seguia, pensava que ainda lhe restava o sonoro "bom dia" acompanhado do sorriso Coréga da dona da loja de artesanato, mas ao se aproximar, se deparou com um recado escrito na porta: "Fechada por motivo de luto." Ela retraiu o sorriso, pensou sobre a vida e a morte: "num instante se está vivo, noutro se está morto." Diante daquela frase, mais algumas partes de si se desfarelaram no chão, como uma estátua se decompondo devido as intempéries do tempo.

Continuou em frente, aquela altura a passos marcados e metódicos, como se ela fosse um robô programado para chegar à algum lugar que já estivera incontáveis vezes.
Ao tentar atravessar a faixa de pedestres, um carro freou bruscamente mas ainda tocou suas pernas. Ela sentiu o calor do motor e notou o rosto irritado do motorista ofendendo-a verbalmente seus antepassados e as futuras gerações. Eis que ali, seu coração desidratou de vez e tornou-se pedra. Ela até pensou em se rebaixar ao nível do motorista, porém, somente baixou a cabeça e continuou andando. Quando finalmente chegou ao trabalho, largou o casaco, amarrou o cabelo, sentou-se em seu computador onde ficaria sete horas ouvindo reclamações de clientes mal educados insatisfeitos com os serviços da empresa e, assim, ela perderia o restante do brilho que lhe restava.   

Em face da rotina, o dia passava vagarosamente, mas como o tempo não para, aquele dia passou mais uma vez.

Na hora da saída, aliviada,  ela se despediu dos colegas burros e malhados e se preparou pra refazer o caminho de volta. Em frente a sinagoga, ela presenciou um bandido bem vestido assaltar uma idosa, ficou indignada, mas ante a impotência, se entristeceu e passou a pensar que sorte que não fora com ela. Aquela altura, já não lhe restava sonhos, sorrisos, nem alma. 
"O mundo era mesmo um moinho." - Pensou ela cabisbaixa.
Ao chegar ao seu casulo, tomou banho, deitou-se, leu dez páginas de um livro interminável, cobriu-se de si mesma e começou seu ritual diário de regeneração. Depois de uma hora, lhe surgiu um pensamento besta: "quem sabe amanhã não seja o dia que eu encontro o amor da minha vida?!"

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