domingo, 3 de setembro de 2017

Revelação




Desde que se entendera por gente, aquele menino se deu conta de uma centelha azul que carregava no peito que lhe conferia uma certeza: ele havia nascido para algo grande. Não sabia o que era, mas tinha como certo que iria chegar tão longe quanto ele próprio jamais supusera.

De origem humilde, tudo que ele podia sonhar aos moldes de sua realidade era conseguir alguns metros de terra pra arar e manter um rebanho de cabras, isso, se sonhasse alto. Se tivesse mesmo que imaginar o impossível, ele poderia sonhar em ampliar o rebanho e comprar mais alguns alqueires de terra. Ora, saindo do nada, um homem que conseguisse tamanhas conquistas já seria grandioso.
Mas o problema era aquela bendita ou maldita centelha no seu peito que lhe repetia sem cessar:
"Tu nasceste para algo grande! Não se conforme com a ordem que a vida lhe conferiu!"

Apesar das certezas, tudo lhe parecia muito vago. Aquele sonhador procurava em si algum talento especial, uma habilidade física, uma afinidade para as contas, um timbre para ópera, ou mesmo mãos hábeis para a pintura, mas nada lhe ocorria além das dúvidas. E a vida pressionando o tempo todo pra que ele se entregasse a ordem e começasse lutar por aqueles sonhos que ele sabia que não eram dele.
Por um tempo, a miséria e as dores ao longo da vida o fizeram mesmo se entregar, ao menos pra manter as futilidades da juventude. E a centelha lá, no lugar de sempre - e no fundo - era ela que o mantinha de pé, que lhe dava forças pra continuar naqueles empregos que detestava, pois tinha como certo que não iria precisar ficar ali pra sempre, pois "grandes coisas estavam por vir". Pelo menos era o que ele acreditava. Era como viver segurando uma bomba relógio sem ter a chance de olhar o marcador.

Ele refletia que aquela centelha devesse ser um pouco mais clara e lhe mostrar logo qual era a sua grande habilidade que o levaria ao topo do mundo. No entanto, lhe ocorria que talvez seu talento fosse de atirador de elite, mas como jamais vira uma arma, ele poderia passar a vida sem se descobrir devido à falta das ferramentas certas. O seu talento poderia ser, na verdade, qualquer coisa, mas vivendo na roça, as chances dele se deparar com as ferramentas pra descobrir a si mesmo eram mínimas.

Sonhador irremediável, ele seguia conformado com a lama do seu presente se baseando nos louros do futuro. Ele sabia que tudo lhe seria revelado, como num passe de mágica mesmo: em um dia iluminado, sem que ele buscasse, um anjo do céu, um alien, um andarilho com a missão de lhe revelar a sua missão grandiosa, olharia nos seus olhos castanhos de tão comuns e diria: filho, tu nasceste com a missão especial de... Qualquer coisa que ele ainda não cogitava o que era.
Enquanto isso, o tempo passava sem parar e a vida lhe sacudindo pra onde bem entendesse. E ele suportando tudo calado. Até que, depois dos vinte anos, embora a centelha ainda estivesse lá em algum lugar, já perdia quase que completamente o brilho. Pensou ele que o combustível para manter aquela centelha azul acesa era os hormônios da adolescência, e o tempo estava naturalmente apagando ela. Por não ser mais tão jovem, ele já se dava conta que talvez não tivesse nascido mesmo pra nada grandioso.

Aquela altura, ele tinha largado os estudos pra trabalhar, mas descobriu com o tempo que, com certeza, a sua habilidade especial não era pra arar a terra, muito menos pra ordenhar cabras.
Ao lhe ser revelado isto, ele desistiu dos trabalhos manuais e resolveu voltar a estudar aos 21 anos. Nesta época, da antiga centelha só existia mais uma fina fumaça cuja evidenciava que um dia ela estivera acesa.

Eis que, enquanto concluía o ensino médio, numa aula qualquer, por impulso, aquele sonhador destratou uma professora de Português ao tal ponto que as lágrimas molharam as suas faces rosadas. Aquele jovem burro, porém, não suportou ser a razão das lágrimas de uma mulher. Era preciso se redimir. 
Em outra aula,  a mesma professora resolve delegar aos alunos a tarefa de escrever um texto com tema livre. Era a chance daquele sonhador de se redimir e mostrar que, no íntimo, ele não era o idiota do triste episódio anterior. Foi assim que, entusiasmado, ele descreveu o amor no papel pela primeira vez. Mas não na forma abstrata, ele se utilizou das características reais de uma moça que encontrou no corredor, de modo que foi até fácil.

Depois de uns dias, a professora retornou com o texto e lhe disse às palavras que mudaram a sua vida: "Eu não sabia que você era assim! Você demonstrou neste texto uma sensibilidade que não condiz com a personalidade que você emana para o mundo”.
Foi assim que ele concluiu:
- Então é isso! Eu sou escritor! 
Mas não pode ser?! Eu odeio ler!

Mesmo odiando a leitura e sem ter lido um único livro por completo até então, aquele jovem sonhador se descobriu escritor.

Agora só precisava escrever algo sublime e maravilhoso de modo a se tornar o grande escritor o qual ele acreditava estar destinado! Mas o quê?



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