sábado, 24 de março de 2018

O senhor do tempo




Numa madrugada, aquele homem já próximo dos trinta anos se flagrou refletindo sobre todas as pessoas que ele aprendera a amar ao longo da vida e que àquela altura seguiam rumos que ele ignorava. Naquela melancolia, recordando com saudade de tudo, sem poder voltar no tempo, ele decidiu que não iria mais permitir que o tempo girasse sem parar e fosse obrigando-o a se adaptar as mudanças, a novas pessoas, a um novo mundo, todo mês, todo ano, todo dia,  isso, sem perguntar se ele estava de acordo ou não.   
      
Se vendo sem habilidade pra manter as pessoas próximas, nem de controlá-las pra que juntas pudessem parar no tempo, lhe ocorreu que a única maneira seria ignorar a todos e se manter sozinho no seu mundo. Ele próprio iria parar no seu próprio tempo, ainda que o tempo dos outros continuasse girando, o dele não iria. Ao menos no seu mundo particular, a mão cruel do tempo não iria mais lhe arrancar as pessoas e obrigá-lo a se reinventar quase que todo dia pra conquistar novas amizades, novos amores, fato que, na sua idade, lhe custava muito. E foi o que ele fez.  

Exercendo o papel do homem mais sozinho do mundo, ele passou, sem muito sacrifício, a seguir a mesma rotina todos os dias. Levantava-se às nove da manhã. Fazia alguns abdominais para esquentar o corpo. Tomava um café preto. Lia as notícias na internet. Refletia por dez minutos sobre a situação política do país sem chegar à conclusão alguma. Depois, cheio de vontade, preparava o almoço; sempre o mesmo bife e o mesmo feijão. Após o almoço, demorava quatorze minutos no banho, onde usava sempre a mesma marca de shampoo e de sabonete. Depois de renovado pelos cheiros do banho, saia de casa sempre faltando dez minutos do horário de começar o trabalho de secretário numa escola primária. Às dezessete horas retornava pra casa, tomava um novo banho e então se dirigia pra faculdade. Retornava às onze, jantava, escovava os dentes, deitava-se - e lá ficava deslizando o dedo no feed de notícias de suas redes sociais sem achar graça em nada até que surgisse o sono. Quando o sono lhe vinha, deixava reproduzindo a mesma série ou música no Youtube pra ficar somente ouvindo, pois tinha medo do silêncio que dava asas a seus pensamentos mais sombrios, fato que lhe causava pesadelos.

Obstinado, ele repetia durante o seu dia tudo que conseguia. Mandou confeccionar várias roupas iguais, para usar pra sempre as mesmas. Produtos consumíveis como alimento e de higiene pessoal, ele comprava sempre da mesma marca e na mesma quantidade. Senão encontrasse, esperava até que chegasse, mas não aceitava o novo. Sentia uma raiva profunda quando alguma marca mudava a embalagem sem necessidade. Dormia sempre do mesmo lado da cama. Andava sempre do mesmo lado da rua, sempre olhando os próprios pés, evitando ao máximo que qualquer coisa diferente se apresentasse em frente os seus olhos. Não se permitiu conhecer mais ninguém desde que tomara aquela decisão; se alguém tentasse se aproximar, ele já repelia com um silêncio perturbador que embaraçava qualquer um, de modo que depois de um tempo, simplesmente ninguém mais tentou puxar assunto com ele que não fosse relacionado a trabalho, fato que facilitou muito a sua vida. 

Passaram-se meses, e ele sempre repetindo na medida do possível tudo. Era como se repetindo aquela rotina, aquelas roupas, ele revivesse todos os dias versões amenizadas do dia anterior, logo, ele economizava uma grande quantidade de energia, pois se tudo era sempre igual, ele não precisava tomar decisões, se reinventar, improvisar; era tudo no automático. 

No início, muitos estranharam, questionaram, mas ele não se dava o trabalho de explicar, então, foram gradualmente deixando-o em paz. Pra ele, bastava suas convicções. O mundo em volta podia seguir em frente da maneira que bem entendesse. Ele não. Ele iria permanecer ali, revivendo mentalmente o seu dia dourado pra sempre, doesse a quem doesse.

Certo que se ele fosse mais jovem,  tal empreitada não seria possível, mas ele descobriu que depois dos trinta, os dias simplesmente se repetem. A única diferença entre ele e a maioria era que alguns trocavam de roupa. "Trinta anos é uma idade tão morna que a gente respira fundo a fim de sentir o gosto da vida, mas não consegue sentir nada, porque já gastamos todo o nosso paladar nos anos anteriores".

Depois de um tempo, o novo não lhe atraía mais em nada, assim sendo, segundo seu ponto de vista, aquela ideia fora a mais acertada da sua vida. Ora, ele não se apaixonava, não sentia ciúmes, saudade, raiva. Nada. Não sentia alegria, mas também não sentia tristeza, rancor ou decepção, de modo que era simplesmente muito cômoda e agradável a vida pra ele. Mentalmente ele se alimentava das lembranças do passado e, sempre que se recordava o quão doloroso era aprender a amar alguém e ter que vê-la partir, mais se convencia que jamais iria deixar que um novo dia surgisse no seu horizonte. 

Depois de um ano, sempre se repetindo e ignorando os outros, ele criou uma aversão profunda pelas mudanças e pela humanidade. "As pessoas são egoístas, falsas, traiçoeiras, e anseiam utopicamente que todo dia seja um novo dia, sem perceberem que há muito não há nada de novo sob o sol". Ele se deu conta que poderia viver pra sempre aquela maneira, sem que ninguém procurasse saber onde ele iria, e se procurassem, notariam que ele simplesmente não queria ir a lugar algum. "Não existe liberdade maior que aquela de não querer ir a lugar algum. O querer é uma prisão." Ele repetia pra si mesmo essas palavras diariamente.

Com essas convicções, aquele homem parou no tempo, e era tão perceptível aquela característica, a falta de perspectiva era tão óbvia, que bastava botar os olhos nele que qualquer um sentia uma profunda melancolia e uma vontade de se afastar pra não ser contaminado com aquela triste solidão.
Assim, a sua maneira, aquele senhor do tempo se tornou o homem mais sem graça do mundo, mas como ele, havia muitos parados no tempo.     

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