sábado, 31 de março de 2018

Sacrifício




- Você é um bom Cachorro Rino. Não acredite em ninguém que lhe disser o contrário. Certo que abocanhou a cadela da advogada, mas convenhamos Amigo, aquela cachorra de apartamento não aguentava nem um sopro forte. Muito mimada, com roupinhas ridículas, de nariz empinado, se achando a dona do bairro. 
E também eu concordo com você; cães são cães, não se deve humanizá-los colocando roupinhas e laços... Vocês ficam ridículos e perdem as características caninas. Quem é que gosta de perder a própria identidade, não é? Lógico que nada justifica a violência. 
É. Eu sei, ela ficava mesmo ridícula com aquelas roupinhas rosas! "Hum!" A gente rir, mas a situação é séria. Mas lógico que tudo era culpa da dona. Tenho certeza que se aquela cadela tivesse escolha, não usaria aqueles adereços. 

É. Somos responsáveis por nossos cães, logo, eu sei que é culpa minha que você nunca tenha saído dos limites desses muros. Eu quis protegê-lo do mundo feroz e acabou que você não aprendeu conviver em harmonia com os outros cães. Não aprendeu dividir território, a respeitar o espaço dos outros, a compreender que não se deve usar de violência só porque o outro é diferente, ou mora em outro bairro, em outra casa. Eu devia tê-lo levado pra passear além dos muros, mostrado o mundo, mostrado que existem outros cães e eles não representavam perigo a sua liberdade de existir e nem iriam comer o alimento destinado a você. Foi tudo culpa minha. Não só por ter descuidado do portão e você ter fugido e avançado na cachorra da advogada, mas por tudo, desde que você nascera. 

Porque cargas d'água aquela cachorra tinha que ser tão pequena? Ela devia ter resistido a sua investida. Mas nem ela, nem você, tem culpa da genética ter lhe proporcionado tanta massa corpórea e a ela nenhuma. 
Mas aquela advogada devia ter ponderado um pouco mais, um processo foi tempestade em um copo d'água, não acha?
Ora, mas quem é que vai ter a presunção de mensurar o amor de alguém pelo seu cão, não é? Vai saber a importância que aquela cachorra tinha pra ela. 
Talvez ela preenchesse com a cadelinha o vazio de nunca ter tido filhos. 
Mas ela também devia ter pensado no apreço que eu tenho por você. 
Ela devia ter pensando o quanto me vale o fato de você sempre me receber com alegria quando chego em casa. Ela devia ter pensado na segurança que você me proporciona. No carinho que eu tenho em alimentá-lo. Ela devia ter cogitado a possibilidade que o amor que ela tem pela sua cadela, é o mesmo que eu tenho por você. Mas os seres humanos são egoístas Rino, só pensam em si mesmos, diferentemente dos cães. 
Não, não, amigo. Você não é um assassino! Foi uma fatalidade, só isso. Se há aqui um grande culpado sou só eu. 

É. Mas agora a gente tem que ir. Se quiser pode dá mais uma corrida até o fundo do quintal. 
Você deve achar que o único mundo que existe é este quintal, não é?
De qualquer forma é seu lar, é justo que passe as vistas mais uma vez no lugar que sempre viveu. Não sei se esse seria o seu último desejo. 
Não Brother, não precisa chorar. A vida é mesmo uma dor, senão tá doendo, quer dizer que a gente não tá vivendo. Maldita filosofia barata não é mesmo Rino? Foda-se! 

Bem que eu queria ser humano o suficiente pra eu mesmo abraçá-lo forte até que deixasse de respirar, como no filme Eu sou a lenda. Mas eu não consigo. Tantas vezes te abracei com carinho, não poderia, nem em um milhão de anos. 
Mas aquela advogada tinha que exigir que sacrificassem você! Que filha da pu...! 
Eu devia levá-lo pra longe, dá-lo a outra pessoa, mas o juiz julgou que você é feroz demais, exigiu sacrifício assistido. É outro filho da pu...! 
Pelo menos não vai doer. E quem vai aplacar a minha dor? Mas quem aplacou a dor da advogada ao perder sua cadelinha? É tudo tão complicado! 
Mas ela devia ser mais sensata e entender que matá-lo não vai mudar nada na vida dela. 
Eu sei. Eu sei que ela quer comprar outra cachorra e não quer correr o risco de perdê-la também. 
Já vai substituir a cadelinha que, segundo ela, tanto amava. Grande amor o dela! 
Eu não vou substituí-lo. Eu prometo. 

A clínica é esta. Eu sei, também estou com um pouco de dificuldade de respirar. 
Não me olha assim, com esses olhos grandes, parecendo que me pergunta o por que de um fim tão cruel! Eu também não sei explicar a razão da vida ser tão injusta! 
O mundo é uma puta selva! Amigo! 

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